Para Iã Maira São Bernardo

 

Sim, é verdade. Tenho uma agulha na garganta. Mais apropriadamente acima da mandíbula direita, perto do pescoço.  Este fato foi identificado há alguns anos, quando estava fazendo um tratamento dentário e necessitava de uma panorâmica – é assim que eles chamam o retrato radiográfico, em terceira dimensão, de toda a face. Foi um escarcéu. Tiveram dificuldade de me dizer. Uma junta médica foi acionada e a notícia nem me causou tanto espanto. Sabia que tinha algo a menos ou a mais. Não sabia que era ali, perto da jugular. Continuei o tratamento dentário. A recomendação era de não atormentar o projétil de sete centímetros, em posição encurvada, em direção à laringe. Esta região, por ser delicada, próximo a terminações nervosas, mereceria um distanciamento tibetano, além do mais, o tal objeto estava lá quietinho, encapsulado, e não haveria de me incomodar. Não deveria ser retirada.  Salvo, algo acontecesse. E aconteceu esta manhã: Meditei sobre a agulha.     

Não havia meditado sobre o que significa uma agulha na garganta. Nem tampouco buscado desesperadamente retirá-la de lá. A ideia de possuir algo que não era meu dentro do meu corpo, acabava por inspirar-me um sentimento inusitado de poder que poderia justificar minhas idiossincrasias na vida. Precisava mesmo explicar uma parte da minha vida. E ei-la: A agulha côncava na garganta. É ela a responsável por meus modos mais duros e os mais resilientes? Soube depois que ela encontrou seu destino por uma desatenta médica em sua vida fatigada de operar crianças em hospitais públicos. Uma cirugia dolorosa de amígdalas poderia ter sido o cenário do aparecimento da agulha. Como não tenho certeza como ela foi aparecer ali, pus-me apenas a conviver com ela. Uma convivência harmoniosa e pacífica. Não tinha grande importância até eu passar a refletir sobre a minha existência e saber qual o papel de uma agulha na garganta. Será que ela pode me ajudar a entender porque tenho dificuldade em analisar comportamentos que refuto com tamanha voracidade? Será que ela pode me ajudar a entender porque em alguns momentos, sinto-me fortalecido e passo a comportar-me como se não tivesse que me preocupar com os próximos dias? Por causa da agulha na garganta achei respostas, às mais adversas e inverossímeis, para uma parte considerável de dúvidas e mistérios que busco junto à humanidade compreender. Como tudo tem uma razão de ser, a agulha tem um sentido. Uma missão promeiteica, uma antevisão de algo que não sabia e que agora, que sei de sua vida em mim, preciso mesmo compreender seu desiderato.

Pois bem, hoje, pela manhã, dei-me a pensar na agulha torta na face. O que ela está querendo me dizer? Preciso dela ainda ou ela precisa ir para que cumpra meu desiderato? Qual nada, tantas pessoas possuem corpos estranhos que depois se tornam íntimos e as pessoas continuam as mesmas. Parte da humanidade vive em êxtases com artefatos, acessórios e arremedos que postulam a sua construção identitária. Eu, que sempre resisti a me localizar no circo humano através destes apetrechos, acabei premiado com um piercing interno. Agora sou um “special body piercing”. Um instrumento cirúrgico que permanece fazendo seu papel depois do ato médico. Quisera ser atendido pelo Dr. House e, a partir dele, encontrar conexões com as minhas patologias e fobias e culpar a agulha na garganta. Enquanto não sei se existe mesmo esta conexão, teimo em pensar como pessoas, que, assim como eu, têm algo no corpo. Uma mulher que engravida, uma pessoa que leva um tiro, alguém que recebe um marca-passo ou um catéter. Isso influencia na vida das pessoas. O destino muda?

Enfim, nada muda. Talvez pensemos que as coisas mudem por si só, e, ao aceitar tal possibilidade, nos façam crer que somos menores. Não sou propenso a analistas, mas antevejo que necessitarei de um para entender esta agulha na garganta. Ou, como dissera Moacir (o escritor), que se tivesse que ir ao analista não seria escritor. De onde retiraria tamanha inspiração e sutilezas para produzir suas obras senão da sua patológica anomalia que nunca deveria ser tratada por nenhum especialista? Pois é, este objeto indecoroso que veio fazer parte de meu corpo tem agora um sentido: Dar significado para uma história mal entendida de minha vida. Não sei quais os sintomas de quem possui agulhas na garganta, - dores de cabeça, vertigem, náuseas, alucinações, delírios - entretanto, sei que meu diagnóstico mais próximo é o de uma pessoa intensa. Uma amiga, simploriamente, me disse que meus defeitos e qualidades se justificam pela intensidade com que trato e faço as coisas.

Os acontecimentos do mundo podem ser explicados (pela teoria do caos) e solucionar as minhas idiossincrasias frente ao pedaço de ferro que guardo na carcaça superior, próximo à nuca frontal. Bem, esta posição me coloca entre as pessoas que possuem algo fora dos padrões aceitáveis. Como não tenho conseguido tratar meus ataques diários de intensidade, percebo que preciso associar esta minha condição de implantado para compreender melhor o caso; foi mais ou menos assim. Dirigi-me ao médico da cabeça e ele, depois de fazer todo o procedimento padrão, avisou-me que tudo não passa de um “stress momentâneo”.  Ai, falei-lhe da agulha - O quê??! Agulha na garganta! Bem, pode ser que este projétil esteja localizado numa região que pode afetar a glândula tireoide e ela pode proporcionar alterações em seu desempenho mental, mais apropriadamente em seu modo de ver e tratar certas coisas da vida prática. Ou então, esta: Fui a uma guia espiritual e ela admitiu que poderia ter sido fruto de um mal cuidado da cabeça, onde guardamos a sabedoria da existência e do mundo. Constatei que nada podia fazer sobre isso, apenas conviver no tempo o que ela tem que fazer no meu corpo como instrumento de algo mais...

Tá vendo! Esta agulha agora está suscitando amplos debates filosóficos, linguísticos, espirituais e políticos. Fui tentar tirá-la: Impossível. Então preciso fazer um acerto de contas com a agulha. Toda manhã faço um carinho nela e ela se transforma em meu amuleto compulsório e permanente para toda a vida terrena e que promova as mais intensas maravilhas em meu ser!

Não tenho medo da agulha. No entanto, confesso que penso tirar vantagem dela. Um poderzinho a mais não seria tão mau. Ou até mesmo uma deficiência que pudesse explicar meus demônios. Foi assim que Sócrates, ao se saber condenado, cultuou o hades como forma de idolatrar-se no inferno do mundo grego que o impingia a uma classificação demeritória. Sócrates precisava de uma convicção para além do que podia dar naquele momento, com o símbolo de sua própria morte. A existência do inferno grego explicaria depois a presença do inferno cristão. Sim, voltemos à agulha. Sócrates tinha uma agulha na garganta e a usou do modo mais útil e profundo para o resto dos dias. Morreu valorizando sua agulha.

Olha, todo mundo tem uma agulha na garganta. Quero dizer: todo mundo tem algo como uma agulha na garganta, localizada em outra parte do corpo ou da mente. A minha marca da existência está localizada na garganta e ela é de metal inoxidável e está aqui agora me motivando a escrever estas linhas. Ela pode seu um átimo materializável, um proto símbolo singularizado, um néctar codificável de cada ser. Pode ser também uma lástima do serviço de saúde pública do país. Uma negligência, uma imperícia, uma imprudência de médicos e pode proporcionar uma ação de responsabilidade do Estado perante seus súditos, de quem deveria, em verdade, cuidar. Pode um artefato visível ou não, sugerir uma indenização pelo Estado para um súdito? Conheço gente que recebe – justamente - dinheiro do Estado por ter apanhado muito na época da ditadura. Posso receber por causa de uma agulha que apareceu na época da ditadura e que dói psicologicamente em mim na face direita?

Obama tem uma agulha em seu cabelo de carapinha, que segundo, Lobato, em seu livro, O Presidente Negro, trouxe-nos esta fábula eugênica: de que no futuro próximo, (em 2228) ainda sobre as disputas étnicas, a solução para o impasse da humanidade, sobre quem é dono da superioridade planetária, poderia resultar numa conspiração resolvida com aplicação de um líquido que retiraria a carapinha dos negros numa pele já esbranquiçada de tantos modos... e, de lambuja perderia, os negros a fertilidade (a solução mágica para o conflito dos povos!) Esta é agulha na garganta de Obama que Lobato tal como um Nostradamus escrevera em 1934, quando nem pensara do que seria o inicio do terceiro milênio. Pois bem, Lobato, como um grande escritor que via o mundo negro do petróleo pela lente da seleção da espécie, nos anteveio e previra que Obama seria a solução para a continuidade do mundo sem maiores encalços, apenas teria que fazer uns arremedos estéticos, e, ei-lo: o avatar da realeza humana pasteurizada e “omeganizada” (esta é uma expressão de Lobato) surgindo como um sonho das nações... Uma agulha... Uma agulha foi o que resultou a solução do mundo.    

Todos aqueles que protagonizam grandes acontecimentos, e contribuíram para que eles acontecessem, apenas acentuaram sua agulha na garganta. Hoje, vivo a fantasia de Drummond: – “agulha não há nem nada” – de que ela não existe e serve apenas para fazermos autoanálise e baratearmos a sofrida vida cara da metrópole. Uma agulha na garganta é um sinal de que tudo tem seu sentido e lugar. Uma mensagem dármica sobre nossa missão no planeta. Toda vez que precisamos de marcas e símbolos criamos algo como se fossem agulhas. Todos os povos do mundo inventaram agulhas para decifrar o enigma da vida.

Tenho amigos que possuem agulhas e nem se dão conta. Preferem não tocar nelas. As vezes quando menciono sobre suas agulhas me pedem para parar e eu paro. No entanto, às vezes, por provocação, menciono suas agulhas para saber que somos iguais e podemos nos encantar com elas. Sim, o reencantamento do mundo está na sabedoria de sabermos lidar com nossas agulhas na garganta.    

Um objeto perfurante navegando numa nave humana pode ser uma antevisão de um futuro que chegou. As pessoas sabem que todos nós seremos controlados por pequenos chips instalados no corpo e dele poderemos tirar todas as informações necessárias para que a tão sonhada liberdade universal exista em nós. Imagine uma agulha com circuitos integrados de alta definição que tenha programado este momento e outros mais comezinhos que já passamos? Desse modo, começo a achar certa alegria e despreendimento. Posso ter sido um dos primeiros de uma geração que possui agulhas no corpo. Sou uma cobaia transcendental de grande porte. Apenas os possuidores de agulhas serão ungidos com a benção divina de possuírem um lugar especial reservado onde outras pessoas não podem entrar. E você, onde está sua agulha?

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