Folha de SP, 08 de julho de 2008

Um débito colossal
FÁBIO KONDER COMPARATO


A escravidão de africanos e afrodescendentes no Brasil foi o crime coletivo de mais longa duração praticado nas Américas

A ESCRAVIDÃO de africanos e afrodescendentes no Brasil foi o crime coletivo de mais longa duração praticado nas Américas e um dos mais hediondos que a história registra.
Milhões de jovens foram capturados durante séculos na África e conduzidos com a corda no pescoço até os portos de embarque, onde eram batizados e recebiam, com ferro em brasa, a marca de seus respectivos proprietários. Essa carga humana era acumulada no porão de tumbeiros, com menos de um metro de altura.
Aqui desembarcados, os infelizes eram conduzidos a um mercado público, para serem arrematados em leilão. O preço individual de cada "peça" dependia da largura dos punhos e dos tornozelos.
Nos domínios rurais, os negros, malnutridos, trabalhavam até 16 horas por dia, sob o chicote dos feitores. O tempo de vida do escravo brasileiro no eito nunca ultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superou a natalidade; de onde o incentivo constante ao tráfico negreiro. Segundo as avaliações mais conservadoras, 3,5 milhões de africanos foram trazidos como cativos ao Brasil.
O seu enquadramento no trabalho rural fazia-se pela violência contínua. Daí a busca desesperada de libertação, pela fuga ou o suicídio. As punições faziam-se em público, geralmente pelo açoite. Era freqüente aplicar a um escravo até 300 chibatadas, quando o Código Criminal do império as limitava ao máximo de 50 por dia. Mas em caso de falta grave, os patrões não hesitavam em infligir mutilações: dedos decepados, dentes quebrados, seios furados.
Tudo isso sem contar o trauma irreversível da desculturação, pois todos os cativos eram brutalmente afastados de sua língua, de seus costumes e suas tradições. Desde o embarque na África, procurava-se agrupar indivíduos de etnias diferentes, falando línguas incompreensíveis uns para os outros. Para que pudessem se comunicar entre si, tinham que aprender a língua dos patrões, gritada pelos feitores. Foi esse, aliás, o principal fator de disseminação da "última flor do Lácio" em todo o território nacional.


Outro efeito desse crime coletivo foi a geral desestruturaçã o dos laços familiares. As jovens escravas "de dentro" serviam habitualmente para saciar o impulso sexual dos machos da casa grande, enquanto na senzala homens e mulheres viviam em alojamentos separados. O acasalamento entre escravos era tolerado para a reprodução, jamais para a constituição de uma família regular.
O resultado inevitável foi a superposição do direito de propriedade aos deveres de parentesco, mesmo sangüíneo. Há alguns anos, um pesquisador ianque encontrou, no 1º Cartório de Notas de Campinas (SP), uma escritura pública de 1869, pela qual um varão, ao se tornar maior de idade, decidiu alforriar a própria mãe, que recebera por herança de seu progenitor.
O fato é que, em 13 de maio de 1888, abolimos a escravidão tal como encerramos, quase um século depois, os horrores do regime militar: viramos simplesmente a página. Os senhores de escravos e seus descendentes não se sentiram minimamente responsáveis pelas conseqüências do crime nefando praticado durante quase quatro séculos.
Ora, essas conseqüências permanecem bem marcadas até hoje em nossos costumes, nossa mentalidade social e nas relações econômicas. Atualmente, negros e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres de nossa população. No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e escolaridade, eles recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos, e as mulheres negras, até metade da remuneração dos trabalhadores negros. Em nossas cidades, mais de dois terços dos jovens assassinados entre 15 e 18 anos são negros.
Na USP, a maior universidade da América Latina, os alunos negros não ultrapassam 2%, e, dos 5.400 professores, menos de dez são negros. É vergonhoso que tenhamos esperado 120 anos para ensaiar a primeira medida de apoio oficial à população negra: a reserva de vagas para matrícula em estabelecimentos de ensino superior.
No entanto, tal medida representa hoje o cumprimento de um expresso dever constitucional. O artigo 3º da Constituição de 1988 declara, como objetivos fundamentais da República, "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", bem como "promover o bem de todos", sem preconceitos de qualquer espécie.


Mas o preconceito que tisna os brasileiros de origem africana não é neles marcado apenas fisicamente, como se fazia outrora com ferro em brasa. Ele aparece registrado como uma degradação social permanente em todos os levantamentos estatísticos.
Que as nossas classes dominantes tenham, enfim, a mínima hombridade de reconhecer que esse colossal passivo de nossa herança histórica ainda nem começou a ser pago!


FÁBIO KONDER COMPARATO , 71, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno" (Companhia das Letras).


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Comentário de surama caggiano em 13 outubro 2010 às 10:50
Pois é! fico feliz com sua parceria, já enviei os dois artigos para amigos, sempre que tiver matéria suas no Balaio me avise, ok? Beijos e saudades desta terra maravilhosa, logo estarei por ai se Deus quizer com a minha exposição Mulheres Africanas que você pode conferir no meu blog. www.artesurama.blogspot.com lá também tem uma campanha em prol destas guerreiras mulheres para o prêmio Nobel da paz para 2011, assine e divulgue a petição, por favor. Fique na Paz.
Comentário de Antonio Carlos Silva Ferreira em 12 outubro 2010 às 16:07
Surama, eu estou rindo aqui porque começamos discutindo um assunto e fomos seguindo para outro, trocando idéias nos comentários de um artigo com outro tema, mas como tudo vale a pena se alma não é pequena, vamo que vamo..rs. Eu tb preciso tomar do próprio remédio quanto à gentileza, costumo ser receptivo, mas gostaria de ser mais pró-ativo e isso tem a ver com outro artigo mais recente: http://www.sergipe.com.br/balaiodenoticias/ac_142.htm
Beijoos
Comentário de surama caggiano em 12 outubro 2010 às 15:43
Amigo Antonio Carlos, parabéns! adorei o artigo do Balaio, me fez refletir sobre mim mesma, sobre minha postura diante de algumas situações em que poderia simplismente ter dado um sorriso, um abraço... obrigada pela mensagem, de coração aberto... muito obrigada! beijos
Comentário de Antonio Carlos Silva Ferreira em 12 outubro 2010 às 14:39
Querida Surama, sem problemas a confusão, afinal dizem que os Antonio Carlos são tutti buona gente (embora tínhamos um na Bahia que sei não viu...rs) e ser confundido com alguém que, conforme voce disse, só escreve coisa boa, é para mim lisonjeiro. A confusão, o acaso e o coração abertos podem gerar boas amizades, mas isto é um assunto para você ler em http://www.sergipe.com.br/balaiodenoticias/ac96.htm
Comentário de surama caggiano em 12 outubro 2010 às 14:05
Antonio Carlos, eu confundi você com o outro Antonio Carlos do Aruanda que eu também sigo, fiz uma confusão!! mas tudo bem, foi ótimo esta confusão, assim posso completar meus conhecimentos e pesquisas contigo também, tô ficando velhinha!! beijos
Comentário de surama caggiano em 12 outubro 2010 às 10:54
Amigo Antonio Carlos, já li os outros artigos, sempre leio seus artigos, aliás parabéns por todos eles, mas pela primeira vez me senti a vontade para responder este, o conhecimento que tenho sobre estas questões estão todos na minha vida prática, embora seja mestiça, mãe negra e pai branco europeu, jamais deixei de reconhecer minhas verdadeiras raízes, devo tudo que hoje consegui alcançar através de uma mulher forte e corajosa que viveu dentro de uma sociedade que não tinha capacidade de se comunicar com ela, que não lhe deu direitos e oportunidades que ela certamente merecia, esta mulher abriu mão de várias coisas na vida pra poder me criar sozinha! do meu pai só me restou o sobrenome, esta mulher foi minha mãe, negra, nordestina, analfabeta, mas com uma sabedoria de vida que jamais alcançarei!! Esta mulher assim como meus antepassados representam hoje a importância de lutar contra os efeitos deste passado, estou tentando, caro amigo. We don´t give up the fight, really!
Comentário de Antonio Carlos Silva Ferreira em 12 outubro 2010 às 10:18
Cara Surama, compreendo o que você diz. Gostaria de lembrar que a questão de reparar o débito, in my humble opinion, como se diz, passa UM POUCO por reconhecer e enaltecer os antepassados, sua contribuição e seu mérito e MUITO por estancar os efeitos perversos desse passado que perduram atés os dias de hoje nas formas contudentes de discriminação racial, ou étnica como preferem alguns, e de desigualdade social. Parabenizo pela sua ação de reconhecimento e acho válida, mas temos que não perder de vista nem desistir de reivindicar e garantir situação melhor para as gerações futuras. Por oportuno, sugiro ler 2 outros posts recentes meus: Racismo. Perguntas e Respostas e Negros no Poder para Negros Poderem. Get up stand up, stand for your rights, get up stand but don´t give up the fight . Bob Marley
Comentário de surama caggiano em 12 outubro 2010 às 10:06
Como mudar esta realidade? Como reparar as causas e os efeitos da escravidão? Sou bisneta de escravos que foram arrancados de sua terra para servir a esta terra que não lhes pertenciam, seus costumes, rituais, culturas e dignidade foram extirpados! Morreram sem nenhum direito, nem mesmo o de viver. A quem gritar? Sinto que a única forma que tenho de reparar o que meus bisavós passaram è através do reconhecimento e do orgulho de ser descendênte deles, através da minha arte posso homenagea-los todos os dias em minha vida, mas não basta!! a ignorância, a perversidade humana permanece.

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